segunda-feira, 2 de março de 2009

A constitucionalidade do artigo 515, § 3º, do Código de Processo Civil

Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito em condições de imediato julgamento

O parágrafo 3º foi introduzido no artigo 515 do Código de Processo Civil pela Lei 10.352 de 26 de dezembro de 2001. Ele traz a possibilidade do julgamento da lide pelo tribunal quando, conhecendo da apelação, a sentença recorrida tiver extinguido o processo sem resolução de mérito (art. 267, CPC) e nos casos em que a ela não tenha resolvido o mérito da causa em toda a sua amplitude, como nos casos de reconhecimento de prescrição e decadência. Desde que a causa verse sobre questão exclusivamente de direito e esteja em condições de imediato julgamento.

Até a modificação empreendida pela Lei 10.352/2001, extinto o processo sem resolução do mérito, a apelação se limitava a demonstrar a impropriedade de tal extinção. Não adentrava o mérito da demanda. E a análise do tribunal também se submetia à mesma limitação.

A lei teve por escopo alterar dispositivos do diploma processual referentes a recurso e reexame necessário. Está inserida no conjunto de reformas processuais que vêm, já há algum tempo, alterando o Código de Processo Civil na busca por maior celeridade da prestação jurisdicional.

Os legisladores buscam reduzir algumas formalidades, que entendem excessivas, visando reduzir a morosidade do trâmite processual. Entende-se que há um número excessivo de recursos nos tribunais que impossibilitam a prestação jurisdicional num prazo razoável, além de transformar o trabalho dos membros e servidores em algo próximo ao inumano.

Essa é a linha que vem inspirando os trabalhos legislativos que se debruçam sobre o direito processual pátrio. Até em busca, inclusive, de atender a um anseio social. A duração razoável do processo, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, é direito fundamental da parte, e a celeridade dever do Estado (art. 5º, LXXVIII, CR).

Assim é que a introdução do § 3º no art. 515 do CPC visa reduzir o trâmite, em tese, desnecessário. O ganho em celeridade está em possibilitar o adentramento ao mérito da demanda desde já pelo tribunal, na hipótese de provimento a recurso contra decisão que extinguiu o processo sem reexame do mérito. Torna inútil a decida para apreciação pelo juízo ad quo, e o possível retorno posterior da matéria em recurso.

Didier Jr. (2008:109) lista os pressupostos a serem preenchidos para a aplicação do dispositivo: a) recurso fundado em “error in judicando”; b) provimento do recurso; c) pedido expresso do recorrente; e d) causa madura.

Corrente majoritária entende que o instituto é aplicável à apelação e ao recurso ordinário constitucional, pela semelhança entre ambos. Alguns ainda o aceitam para o recurso especial do Juizado Especial.

Citado como o primeiro dos requisitos, o recurso deve estar fundado em erro do julgador no entendimento, na interpretação da lei, em um entendimento incorreto da situação fática. Pois essa é a hipótese para reforma da decisão. Fundado o recurso em error in procedendo - que consiste em erro na aplicação da lei, ilegalidade no trâmite processual ou erro no procedimento –, a decisão deverá ser anulada, e não substituída. Aqui, e em diversos outros pontos, Didier Jr. (2008:108), traz a lume o entendimento de Gervásio Lopes Jr., a discordar do pensamento predominante. Este autor entende, no caso, cabível a aplicação do artigo inclusive para hipóteses de anulação da decisão, em consonância com o ideal da novidade.

Na seqüência, exige-se que seja dado provimento ao recurso. Só a reforma da decisão “a quo”, dando razão ao recorrente, afasta a extinção do processo, permitindo a análise do mérito da demanda. O tribunal não deve vislumbrar causa de inadmissibilidade da demanda.

Didier Jr. (2008:108) entende como pressupostos de aplicabilidade do dispositivo o pedido expresso do recorrente para apreciação do mérito ao ser dado provimento ao recurso. Trata-se do princípio dispositivo. Se o recorrente requerer o retorno dos autos ao juízo anterior, por ignorância ou conveniência, o tribunal não poderá proceder ao exame do mérito com fundamento no art. 515, § 3º, do CPC. Do contrário, incorreria em julgamento “extra” ou “ultra petita”.

E, por fim, é necessário que a causa esteja madura para julgamento. Para Marinoni (2008: 527) “causa madura é aquela cujo processo já se encontra com todas as alegações necessárias feitas e todas as provas admissíveis colhidas”. A causa deve estar devidamente instruída a possibilitar o imediato julgamento pelo tribunal. Didier Jr. (2008: 109) anota que a causa deve versar “sobre questão exclusivamente de direito, ou questão de fato/direito que não demande mais provas”.

Preenchido os requisitos, o julgamento do mérito de demanda é obrigatório ao tribunal.

Celeuma trazido pela inovação de 2001 foi a constitucionalidade do afastamento do princípio do duplo grau de jurisdição.

O Princípio do duplo grau significa o direito da parte vencida de ter sua demanda reapreciada. Marinoni (2008-2:495) melhor o define como o princípio do duplo juízo sobre o mérito, pois alguns recursos encaminham a reapreciação da demanda ao mesmo juízo. O autor cita como exemplo os embargos infringentes na Lei de Execuções Ficais e recurso para a Turma Recursal na Lei dos Juizados Especiais.

Parte da doutrina o entende como princípio fundamental do processo. Alguns, até mesmo, como uma garantia.

Didier (2008:27), entretanto, discorda. O autor leciona que a Constituição Federal disciplinou o Poder Judiciário como uma organização hierarquizada. Ao prever a existência de vários tribunais, inseriu-se constitucionalmente o princípio do duplo grau de jurisdição. Outros o vislumbram dentro da cláusula geral do devido processo legal e da garantia do contraditório. Mas não chegaria a se constituir em uma garantia. De forma que ele poderia sofrer exceções, principalmente quando for necessário um juízo de ponderação com outros princípios.

A inafastabilidade do princípio, por outro lado, sofre severas críticas pelo professor Marinoni (2008).

Primeiramente, essa linha de raciocínio transforma o juiz de primeiro grau em mero instrutor do processo, retirando a sua importância. Tira-se da sua decisão a qualidade de modificar a vida das pessoas, de forma a dar a tutela concreta ao direito do requerente.

Outro prejuízo trazido pela não ponderação desse princípio se dá quanto ao princípio da oralidade. Este visa a uma justiça de maior qualidade ao permitir o contato direto do julgador com as partes e as provas. Ver-se a revisão como garantia absoluta, levando a apreciação do mérito a juízes que não tiveram contato com as partes e a prova, afasta os benefícios visados pela oralidade.

Se o juiz vai formando seu juízo sobre o mérito à medida que o procedimento caminha, é equivocado supor que alguém que julgará com base nos escritos dos depoimentos das partes e das testemunhas estará em melhores condições de decidir (Marinoni 20082:498).

Ademais, a aplicação peremptória do princípio do duplo grau de jurisdição, inclusive em processos mais simples, acaba contribuindo para a morosidade da prestação jurisdicional, em razão do volume sobre-humano de trabalho desnecessário que vai criando. Racional é possuir mecanismos para afastá-lo naquelas causas em que é notório que o juízo ad quem não chegará a decisão diversa daquela tomada por aquele “ad quo”.

Essas são algumas das razões que apregoam a afastabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição. O que não fere o contraditório e a ampla defesa. Ao legislador infraconstitucional, na ponderação com outros princípios que também inspiram o processo, é permitido afastar o princípio do duplo grau de jurisdição.

Nas hipóteses em que o duplo grau deva permanecer, “deve ser instituída a execução imediata da sentença como regra”. Assim, “além de privilegiar-se o direito à adequada e tempestiva tutela jurisdicional, privilegia-se a função do juiz de primeiro grau” (Marinoni: 20082; 501).

Em conclusão, é correto afirmar que o legislador infraconstitucional não está obrigado a estabelecer, para toda e qualquer causa, uma dupla revisão em relação ao mérito, principalmente porque a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, LXXVIII, garante a todos o direito à tutela jurisdicional tempestiva, direito este que não pode deixar de ser levado em consideração quando se pensa em “garantir” a segurança da parte através da instituição da “dupla revisão” (Marinoni: 2008, 505).

Dessarte, não há inconstitucionalidade no afastamento do princípio do duplo grau de jurisdição. O princípio do duplo grau de jurisdição não se trata de garantia constitucional ou um princípio fundamental da justiça. Deve-se proceder a um juízo de ponderação no qual o legislador e o julgador têm que sopesar os princípios a serem aplicados ao processo. Reduzindo e até deixando de aplicar alguns. Isso, conforme os objetivos constitucionais/justos a serem atingidos.

Assim é que a introdução do § 3º no art. 515 do CPC e outras alterações visando à duração razoável do processo se adéquam ao ordenamento pátrio. Entretanto, não se deve olvidar que tal deve, sempre, ser compatibilizado com outro direito fundamental, o direito ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CR).

Referências
DIDIER Jr., Fredie. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. Vol. 3. Salvador: Editora Jus Podium, 2008.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de processo civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. – 5. ed. rev. e atual. de acordo com a Reforma do Judiciário as recentes reformas do Código de Processo Civil. Barueri: Manole, 2006.

MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. pp 527 e 528

MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. (Curso de processo civil; v. 2)

MENA, Fábio de Vasconcelos. Processo civil. São Paulo: Prima Cursos Preparatórios, 2004.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante: atualizado até 1º de março de 2006 – 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

VADE MECUM. 5. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008

Nenhum comentário:

Receba as atualizações do meu blog no conforto do seu e-mail!

Digite o seu endereço de e-mail e clique em "Subscribe":

Delivered by FeedBurner